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Ela
vivia resmungando palavras de insatisfação e revolta, com sua voz rouca e
pesada, provavelmente contra as agruras da própria vida.
As pessoas diziam que ela nascera sobre a proteção da Lei
do Ventre Livre, mas que isto não lhe beneficiara em nada, pois vivera como
verdadeira escrava, ajudando os pais a lavrarem a terra inculta e a engordarem
a algibeira do “sinhô”.
Também diziam que seus filhos quase haviam morrido por
falta do leite que lhe fora subtraído dos seios negros para alimentar o filho
branco da “sinhá”.
Ela engomara, lavara e polira o chão por onde o “patrãozinho”
pisava, e ganhara as marcas da escravidão, que ficaram gravadas em suas costas
e em sua alma, para sempre. Não tivera liberdade em instante algum. Sua vida
inteira tinha sido uma imensa desonra, cujo maior suplício era as gonilhas do
preconceito que sufocam inexoravelmente as pessoas. Na mocidade, rifões
deprimentes eram lançados no seu rosto para humilhá-la. Negro não era
considerado humano, vivia para o trabalho e pelo trabalho morria. Mas, apesar
do trabalho extenuante, da fome e dos maus-tratos, ela tivera um companheiro
com quem dividira o sofrimento e comungara as tristezas da vida de cão que Deus
lhe dera. Depois, perdera o marido e seus filhos haviam se dispersado pelos
caminhos da vida. Cada um seguira o destino que a própria vida lhes reservara,
e ela ficara só, na sua atribulação, a penar como alma desvalida. Todos eles,
entretanto, tinham constituído a sua grande alegria, o motivo de sua
existência, a razão pela qual se mantivera firme e corajosa, enfrentando as
acídias cruéis de um sistema maldoso que dividia, machucava, destruía e
transformava o ser humano em animal.
Agora, vestida em andrajos, magra como um esqueleto, se locomovia
com extrema dificuldade, tateando as coisas. Vivia curvada sobre o próprio
corpo, tinha os pés rachados, as pernas inchadas, as mãos deformadas por calos,
os olhos cobertos por uma carne branca sem vida que a impedia de ver a luz dos
dias. Morava sozinha em uma casa miserável de onde jamais saía. Não tinha
visitas, apenas de crianças, mas estas chegavam somente à porta do seu casebre
olhando-a com desconfiança, não se aproximavam; afinal, diziam que ela se
transformava em porca faminta que perseguia as pessoas nas noites soturnas da
cidade.
Ela sabia que o sofrimento que vivenciava na velhice era
superior ao sofrimento do passado, porque não existia sofrimento maior que a
solidão, que era enorme e feria e sangrava mais que faca pontiaguda cravada ao
coração.
No desfolhar do calendário do tempo, perdera os parentes e
amigos, tornando-se uma mulher triste e solitária, sendo-lhe impossível uma
convivência com pessoas estranhas, que possuíam outros hábitos e faziam parte
de um novo mundo, que viviam e sentiam as coisas de uma forma totalmente
diversa da sua. Assim, vivia perdida no próprio tempo, no desamparo e na
fragilidade dos seus mais de cem anos. Mas tinha certeza que, lá fora, a vida
transcorria normalmente, que os brancos não partiam deste para o outro mundo
sentindo na carne a dor do abandono e da indiferença, como se fossem trastes
imprestáveis. Além do mais, ela não conhecera um único homem branco que não
tivesse morrido no seio da família, recebendo o conforto de filhos e netos. No
seu caso, tudo seria diferente: morreria sem afeto, sem acompanhamento, sem
velas.
***
Naquela manhã, ela não se levantou da rede. Ficou deitada
relembrando a própria história, e tudo passava rapidamente pela sua cabeça
fazendo-a reviver os dias de escravidão dos pais e a falta de amor a que fora
submetida, as dores e mágoas no peito quando alguém lhe tratava com desdém, a
humilhação, a vergonha e dor que sofrera quando fora violentada pelo sinhô, sob
ameaça de morte, as tristezas que sufocaram seu peito quando perdera os filhos
para o mundo.
Lembrou-se que ontem mesmo ela não comparecera à movimentada punga
de Santa Joana. Por conseguinte, não viajara no primeiro caminhão que chegara à
cidade, comprado pelo prefeito Lourenço Pinto. Mas isto não tinha importância.
Ela ainda iria àquela distante região, a pé, vencendo os caminhos de areia
branca, cruzaria os campos verdejantes, os igarapés sombrios, e tomaria juçara
com farinha de puba na casa de Pedoca, no São Felix, comeria carne de porco na
casa de Zé Maciel, no São Benedito, e aproveitaria para procurar, nos povoados
da redondeza, pelos filhos desaparecidos. Ademais, há tempos ela não escutava a
Voz da Vitória, o alto-falante mais antigo da cidade. O que teria acontecido? O
sino da igreja parecia distante... Entretanto, escutava perfeitamente a voz
solene do padre Eliud repetindo a Bíblia Sagrada para os pecadores que
assistiam à missa domingueira: “...Os últimos serão os primeiros na mesa do
Senhor!”
Então, recordou-se de que nunca mais havia rezado, e rezou
baixinho pedindo perdão pelos seus pecados, sentindo-se aliviada das suas
dores. Ouviu a voz das águas do rio como um sussurro de afago deslizando rumo
ao mar e, no silêncio do seu casebre, ouviu também o próprio coração batendo,
batendo, batendo cada vez mais fraco. Por fim, ocorreu-lhe que haviam
inaugurado luz elétrica na cidade, mas ela não quisera tomar conhecimento da
novidade. Gostava mesmo era de uma pequena fogueira constantemente acesa no
chão de terra batida da sala da sua morada desprendendo fumaça cheirosa de
murta, de laranjeira e malva. Aquela fogueira era um costume que viera de
terras distantes com seus antepassados, e que se fizera incorporar ao seu
sangue, à sua história, à sua vida. Mas a fogueira começava a apagar, e um frio
repentino entorpecia-lhe o corpo. Sua alma parecia leve, como o adejar de
borboletas sobre açucenas do campo. Viu máquinas estranhas rasgando a mata por
onde passaria a estrada de asfalto, motivo de progresso e riqueza para a
região, novas ruas sendo abertas em sua cidade, o corre-corre das pessoas sem
tempo, a Estrela do Mar chegando de São Luís toda iluminada, aportando na rampa
da praça, trazendo passageiros ilustres, estudantes presunçosos, comerciantes
soberbos, e sua tripulação, apressada, ansiando pelo próximo porto. Fechou os
olhos devagar e quase não ouvia mais a voz das águas do rio deslizando rumo ao
mar e o coração batendo, batendo, batendo cada vez mais fraco, no silêncio
longo da existência breve. A escuridão da noite chegava. A escuridão, aquele
círculo inexorável que começara a se formar quando ela, naquela madrugada
aziaga, nascera no chão miserável da senzala como um animal assustado, carente
de afeto, de compreensão, de amor e respeito.
Velha Amância não quis levantar-se da rede. Ou o
entorpecimento dos membros e do seu desejo a impediam. Sorriu estranhamente e
agradeceu a Deus pela misericórdia de ter vivido.
No final da tarde, um pássaro colorido, envolto numa auréola
fulgurante, pousou nos ramos de uma árvore do seu quintal. E, ali, ele cantou
uma estranha cantiga. A cidade parou por alguns instantes para ouvi-lo, um
aroma gostoso de murta queimada impregnou o vento, o rio ficou transparente, o
céu, mais azul, as árvores e as pequenas plantas, como que tocadas por uma
força misteriosa, de repente fizeram brotar toda a sua floração, as pessoas se
entreolharam envergonhadas de suas torpezas, sorriram e se abraçaram, e o velho
sino da igreja por diversas vezes repicou, menos de tristeza, de dor ou
saudade, mas compreendendo que, naquele momento, uma vida se despojava do
martírio do seu viver, para que outras, recém-nascidas e esperançosas,
inaugurassem a música sonora dos novos tempos.
Depois disto, o pássaro colorido levantou vôo, levando
consigo o último suspiro e a alma da Velha Amância para além, muito além das
estrelas.
Arimatea, homem inteligente e grande literato.
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