segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Arimatea Coelho: A solidão da velha Amância


 

Ela vivia resmungando palavras de insatisfação e revolta, com sua voz rouca e pesada, provavelmente contra as agruras da própria vida.
       As pessoas diziam que ela nascera sobre a proteção da Lei do Ventre Livre, mas que isto não lhe beneficiara em nada, pois vivera como verdadeira escrava, ajudando os pais a lavrarem a terra inculta e a engordarem a algibeira do “sinhô”.
        Também diziam que seus filhos quase haviam morrido por falta do leite que lhe fora subtraído dos seios negros para alimentar o filho branco da “sinhá”.
      Ela engomara, lavara e polira o chão por onde o “patrãozinho” pisava, e ganhara as marcas da escravidão, que ficaram gravadas em suas costas e em sua alma, para sempre. Não tivera liberdade em instante algum. Sua vida inteira tinha sido uma imensa desonra, cujo maior suplício era as gonilhas do preconceito que sufocam inexoravelmente as pessoas. Na mocidade, rifões deprimentes eram lançados no seu rosto para humilhá-la. Negro não era considerado humano, vivia para o trabalho e pelo trabalho morria. Mas, apesar do trabalho extenuante, da fome e dos maus-tratos, ela tivera um companheiro com quem dividira o sofrimento e comungara as tristezas da vida de cão que Deus lhe dera. Depois, perdera o marido e seus filhos haviam se dispersado pelos caminhos da vida. Cada um seguira o destino que a própria vida lhes reservara, e ela ficara só, na sua atribulação, a penar como alma desvalida. Todos eles, entretanto, tinham constituído a sua grande alegria, o motivo de sua existência, a razão pela qual se mantivera firme e corajosa, enfrentando as acídias cruéis de um sistema maldoso que dividia, machucava, destruía e transformava o ser humano em animal.
     Agora, vestida em andrajos, magra como um esqueleto, se locomovia com extrema dificuldade, tateando as coisas. Vivia curvada sobre o próprio corpo, tinha os pés rachados, as pernas inchadas, as mãos deformadas por calos, os olhos cobertos por uma carne branca sem vida que a impedia de ver a luz dos dias. Morava sozinha em uma casa miserável de onde jamais saía. Não tinha visitas, apenas de crianças, mas estas chegavam somente à porta do seu casebre olhando-a com desconfiança, não se aproximavam; afinal, diziam que ela se transformava em porca faminta que perseguia as pessoas nas noites soturnas da cidade.
        Ela sabia que o sofrimento que vivenciava na velhice era superior ao sofrimento do passado, porque não existia sofrimento maior que a solidão, que era enorme e feria e sangrava mais que faca pontiaguda cravada ao coração.
      No desfolhar do calendário do tempo, perdera os parentes e amigos, tornando-se uma mulher triste e solitária, sendo-lhe impossível uma convivência com pessoas estranhas, que possuíam outros hábitos e faziam parte de um novo mundo, que viviam e sentiam as coisas de uma forma totalmente diversa da sua. Assim, vivia perdida no próprio tempo, no desamparo e na fragilidade dos seus mais de cem anos. Mas tinha certeza que, lá fora, a vida transcorria normalmente, que os brancos não partiam deste para o outro mundo sentindo na carne a dor do abandono e da indiferença, como se fossem trastes imprestáveis. Além do mais, ela não conhecera um único homem branco que não tivesse morrido no seio da família, recebendo o conforto de filhos e netos. No seu caso, tudo seria diferente: morreria sem afeto, sem acompanhamento, sem velas.
                                               ***
     Naquela manhã, ela não se levantou da rede. Ficou deitada relembrando a própria história, e tudo passava rapidamente pela sua cabeça fazendo-a reviver os dias de escravidão dos pais e a falta de amor a que fora submetida, as dores e mágoas no peito quando alguém lhe tratava com desdém, a humilhação, a vergonha e dor que sofrera quando fora violentada pelo sinhô, sob ameaça de morte, as tristezas que sufocaram seu peito quando perdera os filhos para o mundo.
     Lembrou-se que ontem mesmo ela não comparecera à movimentada punga de Santa Joana. Por conseguinte, não viajara no primeiro caminhão que chegara à cidade, comprado pelo prefeito Lourenço Pinto. Mas isto não tinha importância. Ela ainda iria àquela distante região, a pé, vencendo os caminhos de areia branca, cruzaria os campos verdejantes, os igarapés sombrios, e tomaria juçara com farinha de puba na casa de Pedoca, no São Felix, comeria carne de porco na casa de Zé Maciel, no São Benedito, e aproveitaria para procurar, nos povoados da redondeza, pelos filhos desaparecidos. Ademais, há tempos ela não escutava a Voz da Vitória, o alto-falante mais antigo da cidade. O que teria acontecido? O sino da igreja parecia distante... Entretanto, escutava perfeitamente a voz solene do padre Eliud repetindo a Bíblia Sagrada para os pecadores que assistiam à missa domingueira: “...Os últimos serão os primeiros na mesa do Senhor!”
     Então, recordou-se de que nunca mais havia rezado, e rezou baixinho pedindo perdão pelos seus pecados, sentindo-se aliviada das suas dores. Ouviu a voz das águas do rio como um sussurro de afago deslizando rumo ao mar e, no silêncio do seu casebre, ouviu também o próprio coração batendo, batendo, batendo cada vez mais fraco. Por fim, ocorreu-lhe que haviam inaugurado luz elétrica na cidade, mas ela não quisera tomar conhecimento da novidade. Gostava mesmo era de uma pequena fogueira constantemente acesa no chão de terra batida da sala da sua morada desprendendo fumaça cheirosa de murta, de laranjeira e malva. Aquela fogueira era um costume que viera de terras distantes com seus antepassados, e que se fizera incorporar ao seu sangue, à sua história, à sua vida. Mas a fogueira começava a apagar, e um frio repentino entorpecia-lhe o corpo. Sua alma parecia leve, como o adejar de borboletas sobre açucenas do campo. Viu máquinas estranhas rasgando a mata por onde passaria a estrada de asfalto, motivo de progresso e riqueza para a região, novas ruas sendo abertas em sua cidade, o corre-corre das pessoas sem tempo, a Estrela do Mar chegando de São Luís toda iluminada, aportando na rampa da praça, trazendo passageiros ilustres, estudantes presunçosos, comerciantes soberbos, e sua tripulação, apressada, ansiando pelo próximo porto. Fechou os olhos devagar e quase não ouvia mais a voz das águas do rio deslizando rumo ao mar e o coração batendo, batendo, batendo cada vez mais fraco, no silêncio longo da existência breve. A escuridão da noite chegava. A escuridão, aquele círculo inexorável que começara a se formar quando ela, naquela madrugada aziaga, nascera no chão miserável da senzala como um animal assustado, carente de afeto, de compreensão, de amor e respeito.
       Velha Amância não quis levantar-se da rede. Ou o entorpecimento dos membros e do seu desejo a impediam. Sorriu estranhamente e agradeceu a Deus pela misericórdia de ter vivido.
     No final da tarde, um pássaro colorido, envolto numa auréola fulgurante, pousou nos ramos de uma árvore do seu quintal. E, ali, ele cantou uma estranha cantiga. A cidade parou por alguns instantes para ouvi-lo, um aroma gostoso de murta queimada impregnou o vento, o rio ficou transparente, o céu, mais azul, as árvores e as pequenas plantas, como que tocadas por uma força misteriosa, de repente fizeram brotar toda a sua floração, as pessoas se entreolharam envergonhadas de suas torpezas, sorriram e se abraçaram, e o velho sino da igreja por diversas vezes repicou, menos de tristeza, de dor ou saudade, mas compreendendo que, naquele momento, uma vida se despojava do martírio do seu viver, para que outras, recém-nascidas e esperançosas, inaugurassem a música sonora dos novos tempos. 
       Depois disto, o pássaro colorido levantou vôo, levando consigo o último suspiro e a alma da Velha Amância para além, muito além das estrelas.

Um comentário: