
Filho
de uma comadre de mamãe e meu vizinho, Juquinha convidou-me, certo dia, para
fazermos uma caçada, lá para as bandas da lagoa. Juquinha era mais velho que
eu. Gostava de desfilar pelas ruas da cidade em uma bicicleta que ganhara de
presente de aniversário.
Durante as noites, enquanto brincávamos de vapor, de cabra-cega e
escondido, ele não se juntava às crianças da rua, ficava sentado na porta da
sua casa entre os mais velhos, escutando- lhes atentamente tudo o que
conversavam, dando opinião, intrometendo-se neste ou naquele assunto. Nos dias
de domingo, ia de calças compridas à missa, conduzindo um pente fino no bolso
traseiro, para alisar constante e presunçosamente os cabelos.
Aquele inesperado convite deixou-me radiante. Certamente ele considerava-me um
igual, do seu tope. Quem sabe, depois daquele convite, ele não me ensinaria a
andar na sua bicicleta, não me ensinaria a ter o mesmo comportamento seu, que
eu tanto invejava e, sozinho, tentava imitar, acreditando-me rapaz,
como ele? Naquele mesmo dia, comprei uma baladeira, mamãe costurou um embornal
de pano em sua velha máquina Vigorelli, onde pus algumas dezenas de pedras
roliças, munição necessária para a caçada, e fiquei aguardando o dia seguinte.
Saímos ao surgir do sol em nossa inocente aventura pelas margens
da lagoa em busca de um pássaro qualquer, no qual pudéssemos disparar nossas
armas infalíveis.
Na verdade, eu nunca fui um exímio atirador de baladeira. Por este
motivo, na caçada, eu seria mais um acompanhante, do que um caçador realmente.
Atentos, vagamos pelas margens da lagoa durante um bom tempo, sem
avistarmos um único pássaro. Já decepcionados e resolvidos a voltar para casa,
ouvimos, porém, o canto estridente de uma jaçanã que pousava na margem oposta a
que estávamos. Esgueiramo-nos entre os arbustos, nos aproximamos da jaçanã que
mariscava calmamente na água parada da lagoa. Juquinha concedeu-me a primazia
de disparar minha baladeira no pássaro indefeso, o que fiz, deliciando-me
daquele momento ímpar. Apontei a minha primitiva arma e a disparei com
surpreendente habilidade. A jaçanã, atingida pela pedra certeira, fez um
desesperado movimento derradeiro tentando levantar voo, e, finalmente,
quedou silenciosamente, sem vida.
Corri para o local onde a jaçanã jazia, sentindo que o coração
saia-me pela boca. Uma enorme sensação de alegria, de imediato, tomou conta de
mim, por aquela façanha. E fiquei ansioso para que ela se repetisse outras
vezes. Aí, então, a vitória seria completa.
Entretanto, depois de algum tempo, sem mais havermos caçado outro
pássaro qualquer, resolvemos finalmente voltar para casa, realizados e
contentes.
Agora eu poderia chegar em casa jubilando-me da caçada, e provar que eu
já era "grande" e, também, que eu já podia andar de bicicleta, usar
calças compridas e pente fino no bolso traseiro, tal como Juquinnha.
Porém, na proporção que nos aproximávamos de casa, senti que a
plumagem do pássaro morto queimava-me as mãos. Olhei nos olhos parados do
pássaro e no sangue que lhe escorria do bico, e um outro sentimento foi-se
apoderando de mim. Sentimento de piedade, de arrependimento pelo ato criminoso
que eu praticara, e isto deixou marcada para sempre a minha vida.
Afinal, aquela jaçanã solitária era um pássaro que vivia desgarrado de
seu bando, o único que vez por outra pousava na lagoa em busca de alimento,
emprestando-lhe a beleza de suas cores e do seu
canto, dando-lhe vida.
Da porta da minha casa, muitas vezes ouvi o canto solitário
daquele pássaro e imaginei-me vendo o seu voo rasante sobre a
bacia d'água e o seu pousar suave sobre uma moita de capim ou entre
as flores abundantes da vegetação.
Quantas vezes não me senti um pássaro também, voando sobre os
campos e lagoas distantes da minha terra, vislumbrando segredos e belezas na
extensa paisagem verdejante. Quase sempre sentia, nesses voos de sonhos e
encantamentos, uma gostosa sensação que eu não sabia ser de liberdade. As asas
daquele pássaro eram minhas asas, seus olhos eram meus olhos.
A sua liberdade era, também, a minha liberdade. Mas, eu havia
roubado a sua liberdade tirando-lhe a vida, e, desta forma, havia destruído a
minha própria liberdade, minha capacidade de voar e de conhecer paisagens
deslumbrantes que ser humano algum seria capaz de conhecer em viagens comuns,
por caminhos de terra.
Cheguei em casa, triste e arrependido. Antes, porém, procurei desfazer-me
daquela jaçanã como quem se desfaz de uma joia preciosa, sem
jubilar-me, e sentindo-me o mais vil, o mais perverso de todos os meninos.
Depois disto, eu nunca mais quis ser caçador de pássaros indefesos.
E - o que se me afigura um castigo exemplar - nunca mais senti por
completo a mesma sensação de liberdade que os pássaros insinuam em seus voos.
*****
Comentário:
Arimatea Coelho, neste belíssimo conto, além de
mostrar muito de seu talento, também despe sua alma diante do leitor,
que então a pode ver sensível e humanitária, carregada de sentimentalidade e de
amor pelas criaturas, como se ver nas seguintes palavras suas: "Porém,
na proporção que nos aproximávamos de casa, senti que a plumagem do pássaro
morto queimava-me as mãos. Olhei nos olhos parados do pássaro e no sangue que
lhe escorria do bico, e um outro sentimento foi-se apoderando de mim.
Sentimento de piedade(...) " .
Seu jeito meio calado e comumente de "cara fechada"
em nada tem a ver com o seu interior rico e cheio de boa vontade. A sua imensa
quantidade de conhecimento, e a sua experiência profunda com a
literatura nacional e estrangeira não deixou
de forjar nele uma alma caridosa e gentil. Quem realmente o
conhece - não obstante os seus erros, os quais todos os seres humanos
possuem - pode testemunhar que ele se configura um homem sério, pacífico,
estudioso e educado.
Por César Oliveira
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