
Em uma canoa bem equipada, Manoel Soares deixou seu
Engenho do Mearim rumando para São Luís, onde trataria de assuntos
comerciais. Nesse dia, sozinha, e sem que alguém percebesse, Maria das Dores
desceu pelas barrancas à beirada do rio, sentou-se em um tronco que a maré
arrastara até ali, e ficou observando Baltazar que, mais adiante, pescava
calmamente, como fazia em todos os dias de completo folgar.
Baltazar fora escravo daquele engenho, mas recebera
carta de alforria no momento em que nenhum “sinhô” de engenho do Maranhão podia
sustentar qualquer negro na condição de escravo, tamanha a campanha que se
fizera pela abolição, movimento que recebeu apoio de vozes cadentes e
denunciadoras de alguns poetas brasileiros, como Castro Alves, na Bahia, e
Trajano Galvão de Carvalho nascido nos arredores da Vila do Mearim - o primeiro a
emprestar seu estro poético em favor da causa, elogiando a beleza da negra de
“olhos de estrelas”, o destemor dos negros fugidos ou denunciando a triste e
dolorosa condição do cativeiro, numa afronta aos poderosos que viviam do suor e
do sangue alheios. Sozinho no mundo, sem proteção das leis, sem condição para
viver em qualquer outro lugar, e não tendo para onde ir, Baltazar pedira a D. Euzébia, esposa de Manoel
Soares, para continuar no engenho, na condição de empregado, recebendo um
pequeno e miserável salário como paga pelo muito que fazia no dia-a-dia do
engenho. No início da tarde, o tempo se arrastava tocado pela mansidão das
horas modorrentas, e Maria das Dores, sentada ali, na beira do rio, observando
o negro que pescava. O sol dardejava luminosidade sobre as águas, e sua luz
radiante mexia com o corpo de Maria das Dores, fazendo com que ela sentisse
estranhas ondas de calor. Com os pés dentro d’água, sentia o vento morno do
início da tarde esvoaçando seus cabelos, o forte odor do suor do negro, e
gostou. Via os músculos potentes dos seus braços, suas costas largas, a calça
arregaçada até os joelhos deixando à mostra as batatas das pernas grossas e
cheias de veias que pareciam saltar da pele negra e luzidia, e ficou como que
extasiada, com o coração a lhe bater com força dentro do peito. O corpo do
negro parecia com o corpo daquele príncipe de cabelos loiros e olhos azuis que
certo dia despedira-se dos pais iniciando uma aventura, cujo objetivo era a
conquista de terras distantes e de riquezas para seu reino, e de uma mulher
bonita para seu coração. Cavaleiro valoroso dos contos de amor que a negra
Gertrudes lhe contara nas noites daquele engenho. Com as mãos em forma de
concha apanhou água do rio derramando-a sobre o rosto, fazendo com que o calor
que sentia diminuísse. Depois, deixou rapidamente o local, envergonhada de si
mesma e da tola comparação que fizera num ímpeto de descontrole, entre o
empregado do engenho do seu pai e aquele príncipe corajoso e bonito, herói das
histórias de conquista e amor da sua infância e da sua adolescência.
Entretanto, o odor do suor de Baltazar não a deixou em paz acompanhando-a,
entranhando em seu corpo, em seu vestido, em suas narinas, transformando-se
numa verdadeira alucinação para ela. Certa noite até chegou a sonhar com
Baltazar, que lhe sorria com os dentes alvos, enquanto caminhava na direção da
sua cama, trazendo consigo o mesmo odor do suor que ela gostava enquanto
estendia-lhe os braços de aconchego para um abraço de amor sublime. Depois
disto, Maria das Dores passou vários dias observando Baltazar, seguindo-o
disfarçadamente, atravessando sempre à sua frente, fazendo-se notar sempre que
possível ao empregado Baltazar. E, durante as noites, rolava sobre o
travesseiro macio como se rolasse sobre o corpo de Baltazar sentindo arrepios,
o corpo a estremecer e seu coração a palpitar de prazer, como se o pobre e
desgraçado empregado do engenho lhe fizesse carinho tocando as partes mais
sensíveis do seu corpo e os segredos bem guardados da sua intimidade. Enfim,
não aguentou mais. Não tinha razão para aguentar. Quase explodindo
por dentro, certo dia, quando o engenho, pela ausência do seu dono e por
incapacidade do seu feitor, estava envolto numa pasmaceira sem fim, com D. Euzébia dormindo largadamente, a roncar em sua
cama, Maria das Dores desceu pelas barrancas até a beirada do rio sentindo
aqueles desejos que a perseguiam. Baltazar pescava distraidamente, como fazia
habitualmente nos dias de completo folgar. Com os tormentosos desejos que
assaltavam e torturavam seu corpo de forma irracional, decidida, caminhou
sorrateiramente pelo pequeno espraiado do rio em direção a Baltazar e, chegando
perto, o empurrou pelas costas para dentro d’água. Baltazar tomou verdadeiro
susto, ficando com a boca aberta, quando viu Maria das Dores despindo-se
rapidamente, deixando à mostra a beleza deliciosa do seu corpo, as curvas
perfeitas das ancas, o talhe perfeito do tronco, as coxas roliças e longas, a
pele macia e rosada, as carnes tenras, o V da luxúria encoberto por uma leve
camada de pêlos negros e brilhantes, os seios saltitantes, lembrando os seios
da deusa do amor e da perdição terrena. Maria das Dores não se preocupou com os
olhos arregalados de susto de Baltazar. E jogou-se nas águas correntes do rio
para entregar-se ao aturdido empregado do engenho, gemendo descontrolada,
beijando a boca do negro com paixão e loucura, mordendo-lhe os lábios carnudos.
Foram instantes de verdadeira felicidade para Maria das Dores que, de olhos
fechados, se derretia toda, balbuciando palavras ininteligíveis que as águas
mornas do rio carregaram rapidamente para o mar e que se perderam no vento, no
marulhar das ondas que, naquele momento, se levantaram bravias como se
quisessem destruir o mundo dos homens e a terra dos deuses. Não custou muito,
Maria das Dores começou a sentir tonturas e enjoos, despertando a curiosidade da mãe, que a pôs em
confissão. Maria das Dores estava grávida. E o autor do crime, o negro
Baltazar. - Que vergonha, meu Deus! – Dizia D. Euzébia para si mesma, com
as mãos na cabeça, talvez, para não perder o juízo. - Que vergonha esta menina
nos aprontou! Nesses dias de indignação, em que D. Euzébia, gorda e suarenta,
espalhada na cama com um pano molhado sobre a testa, maldizia o momento em que
aconselhara o marido a permanecer com Baltazar no engenho, Manoel Soares vencia
as correntezas do rio Mearim, na volta da sua longa viagem, cansado, porém, feliz.
Passara bons momentos em São Luís nos braços da sua amante Joventina. O amor quente e
sedutor da mulata, o prendera por vários meses, quase o fazendo esquecer que
tinha um engenho e uma família para cuidar. Ao chegar, logo tomou conhecimento
do caso desonroso em que se envolvera sua única filha. Na mesma hora, ordenou a
Faustino Dorneles, o seu capataz: - Amarre esse preto safado e lhe dê vinte
chibatadas. Amanhã verei o que fazer. A voz do fazendeiro soou fria, de forma
incontestável, determinada. Amarrado a um tronco que ficava em frente à casa
grande do engenho, Baltazar foi chicoteado nas costas durante vinte vezes, mas
ele aguentou o suplício com dignidade, sem pedir clemência, sem
lamentar, sem derramar uma lágrima. Em suas costas ficou desenhado um estranho
mapa sangrento, a comprovar o ódio que Manoel sentia no coração. Ao amanhecer
do dia, Manoel Soares embarcou Maria das Dores para São Luís, onde esta
passaria a morar com uma tia. O negro Baltazar, porém, precisava sofrer mais
ainda, receber uma punição justa pelo seu ato. Precisava sofrer para nunca mais
mexer com filha de branco, de homem honrado, de fazendeiro importante e sério.
E não perdeu tempo: chamou o feitor e dois trabalhadores, ordenou que vendassem
os olhos de Baltazar e iniciaram uma viagem pelo mato bravio da região. Pararam
na orla de um campo verdejante, acenderam uma fogueira e puseram um ferro
pontiagudo no fogo até que ficasse vermelho. Baltazar estava com as mãos
amarradas para trás. Os golpes de açoite que lhe retalhara o corpo doíam-lhe
terrivelmente. Sentou-se no chão. Manoel Soares se aproximou da fogueira, pegou
o ferro incandescente, ordenou que segurassem Baltazar e, sem qualquer piedade,
vazou-lhe os olhos com o ferro que havia retirado da fogueira ardente. O
escravo soltou um grito de dor tão aterrador que os animais selvagens da
redondeza desembestaram em uma carreira louca, fugindo daquele grito
alucinante. Baltazar, não suportou tanto sofrimento, e logo desmaiou. O grupo
fez o caminho de volta à casa de engenho, em silêncio, sem Baltazar, que ficara
jogado no chão, sozinho e desprotegido dentro do mato para que morresse e fosse
devorado pelos animais selvagens. Por ordem do fazendeiro, nunca mais se falou
em Maria das Dores e Baltazar naquela casa, ou melhor, naquele engenho. *** Em
frente ao que restou da bonita casa-grande do engenho, próxima às barrancas do
rio, formou-se o pequeno povoado que vemos agora quando passamos de lancha pelo
rio. Vivem ali apenas descendentes de antigos trabalhadores do engenho de
Manoel Soares, vítima que foi de terrível assombração que começou a
aterrorizá-lo desde alguns dias após ter abandonando Baltazar nas matas
perigosas, para que este, desprotegido, cego e amarrado com as mãos para trás,
morresse devorado pelos animais da região. (ARIMATEA COELHO)
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