segunda-feira, 5 de novembro de 2012

UM CASO DE AMOR NO ENGENHO MEARIM

Em uma canoa bem equipada, Manoel Soares deixou seu Engenho do Mearim rumando para São Luís, onde trataria de assuntos comerciais. Nesse dia, sozinha, e sem que alguém percebesse, Maria das Dores desceu pelas barrancas à beirada do rio, sentou-se em um tronco que a maré arrastara até ali, e ficou observando Baltazar que, mais adiante, pescava calmamente, como fazia em todos os dias de completo folgar.
Baltazar fora escravo daquele engenho, mas recebera carta de alforria no momento em que nenhum “sinhô” de engenho do Maranhão podia sustentar qualquer negro na condição de escravo, tamanha a campanha que se fizera pela abolição, movimento que recebeu apoio de vozes cadentes e denunciadoras de alguns poetas brasileiros, como Castro Alves, na Bahia, e Trajano Galvão de Carvalho nascido nos arredores da Vila do Mearim - o primeiro a emprestar seu estro poético em favor da causa, elogiando a beleza da negra de “olhos de estrelas”, o destemor dos negros fugidos ou denunciando a triste e dolorosa condição do cativeiro, numa afronta aos poderosos que viviam do suor e do sangue alheios. Sozinho no mundo, sem proteção das leis, sem condição para viver em qualquer outro lugar, e não tendo para onde ir, Baltazar pedira a D. Euzébia, esposa de Manoel Soares, para continuar no engenho, na condição de empregado, recebendo um pequeno e miserável salário como paga pelo muito que fazia no dia-a-dia do engenho. No início da tarde, o tempo se arrastava tocado pela mansidão das horas modorrentas, e Maria das Dores, sentada ali, na beira do rio, observando o negro que pescava. O sol dardejava luminosidade sobre as águas, e sua luz radiante mexia com o corpo de Maria das Dores, fazendo com que ela sentisse estranhas ondas de calor. Com os pés dentro d’água, sentia o vento morno do início da tarde esvoaçando seus cabelos, o forte odor do suor do negro, e gostou. Via os músculos potentes dos seus braços, suas costas largas, a calça arregaçada até os joelhos deixando à mostra as batatas das pernas grossas e cheias de veias que pareciam saltar da pele negra e luzidia, e ficou como que extasiada, com o coração a lhe bater com força dentro do peito. O corpo do negro parecia com o corpo daquele príncipe de cabelos loiros e olhos azuis que certo dia despedira-se dos pais iniciando uma aventura, cujo objetivo era a conquista de terras distantes e de riquezas para seu reino, e de uma mulher bonita para seu coração. Cavaleiro valoroso dos contos de amor que a negra Gertrudes lhe contara nas noites daquele engenho. Com as mãos em forma de concha apanhou água do rio derramando-a sobre o rosto, fazendo com que o calor que sentia diminuísse. Depois, deixou rapidamente o local, envergonhada de si mesma e da tola comparação que fizera num ímpeto de descontrole, entre o empregado do engenho do seu pai e aquele príncipe corajoso e bonito, herói das histórias de conquista e amor da sua infância e da sua adolescência. Entretanto, o odor do suor de Baltazar não a deixou em paz acompanhando-a, entranhando em seu corpo, em seu vestido, em suas narinas, transformando-se numa verdadeira alucinação para ela. Certa noite até chegou a sonhar com Baltazar, que lhe sorria com os dentes alvos, enquanto caminhava na direção da sua cama, trazendo consigo o mesmo odor do suor que ela gostava enquanto estendia-lhe os braços de aconchego para um abraço de amor sublime. Depois disto, Maria das Dores passou vários dias observando Baltazar, seguindo-o disfarçadamente, atravessando sempre à sua frente, fazendo-se notar sempre que possível ao empregado Baltazar. E, durante as noites, rolava sobre o travesseiro macio como se rolasse sobre o corpo de Baltazar sentindo arrepios, o corpo a estremecer e seu coração a palpitar de prazer, como se o pobre e desgraçado empregado do engenho lhe fizesse carinho tocando as partes mais sensíveis do seu corpo e os segredos bem guardados da sua intimidade. Enfim, não aguentou mais. Não tinha razão para aguentar. Quase explodindo por dentro, certo dia, quando o engenho, pela ausência do seu dono e por incapacidade do seu feitor, estava envolto numa pasmaceira sem fim, com D. Euzébia dormindo largadamente, a roncar em sua cama, Maria das Dores desceu pelas barrancas até a beirada do rio sentindo aqueles desejos que a perseguiam. Baltazar pescava distraidamente, como fazia habitualmente nos dias de completo folgar. Com os tormentosos desejos que assaltavam e torturavam seu corpo de forma irracional, decidida, caminhou sorrateiramente pelo pequeno espraiado do rio em direção a Baltazar e, chegando perto, o empurrou pelas costas para dentro d’água. Baltazar tomou verdadeiro susto, ficando com a boca aberta, quando viu Maria das Dores despindo-se rapidamente, deixando à mostra a beleza deliciosa do seu corpo, as curvas perfeitas das ancas, o talhe perfeito do tronco, as coxas roliças e longas, a pele macia e rosada, as carnes tenras, o V da luxúria encoberto por uma leve camada de pêlos negros e brilhantes, os seios saltitantes, lembrando os seios da deusa do amor e da perdição terrena. Maria das Dores não se preocupou com os olhos arregalados de susto de Baltazar. E jogou-se nas águas correntes do rio para entregar-se ao aturdido empregado do engenho, gemendo descontrolada, beijando a boca do negro com paixão e loucura, mordendo-lhe os lábios carnudos. Foram instantes de verdadeira felicidade para Maria das Dores que, de olhos fechados, se derretia toda, balbuciando palavras ininteligíveis que as águas mornas do rio carregaram rapidamente para o mar e que se perderam no vento, no marulhar das ondas que, naquele momento, se levantaram bravias como se quisessem destruir o mundo dos homens e a terra dos deuses. Não custou muito, Maria das Dores começou a sentir tonturas e enjoos, despertando a curiosidade da mãe, que a pôs em confissão. Maria das Dores estava grávida. E o autor do crime, o negro Baltazar. - Que vergonha, meu Deus! – Dizia D. Euzébia para si mesma, com as mãos na cabeça, talvez, para não perder o juízo. - Que vergonha esta menina nos aprontou! Nesses dias de indignação, em que D. Euzébia, gorda e suarenta, espalhada na cama com um pano molhado sobre a testa, maldizia o momento em que aconselhara o marido a permanecer com Baltazar no engenho, Manoel Soares vencia as correntezas do rio Mearim, na volta da sua longa viagem, cansado, porém, feliz. Passara bons momentos em São Luís nos braços da sua amante Joventina. O amor quente e sedutor da mulata, o prendera por vários meses, quase o fazendo esquecer que tinha um engenho e uma família para cuidar. Ao chegar, logo tomou conhecimento do caso desonroso em que se envolvera sua única filha. Na mesma hora, ordenou a Faustino Dorneles, o seu capataz: - Amarre esse preto safado e lhe dê vinte chibatadas. Amanhã verei o que fazer. A voz do fazendeiro soou fria, de forma incontestável, determinada. Amarrado a um tronco que ficava em frente à casa grande do engenho, Baltazar foi chicoteado nas costas durante vinte vezes, mas ele aguentou o suplício com dignidade, sem pedir clemência, sem lamentar, sem derramar uma lágrima. Em suas costas ficou desenhado um estranho mapa sangrento, a comprovar o ódio que Manoel sentia no coração. Ao amanhecer do dia, Manoel Soares embarcou Maria das Dores para São Luís, onde esta passaria a morar com uma tia. O negro Baltazar, porém, precisava sofrer mais ainda, receber uma punição justa pelo seu ato. Precisava sofrer para nunca mais mexer com filha de branco, de homem honrado, de fazendeiro importante e sério. E não perdeu tempo: chamou o feitor e dois trabalhadores, ordenou que vendassem os olhos de Baltazar e iniciaram uma viagem pelo mato bravio da região. Pararam na orla de um campo verdejante, acenderam uma fogueira e puseram um ferro pontiagudo no fogo até que ficasse vermelho. Baltazar estava com as mãos amarradas para trás. Os golpes de açoite que lhe retalhara o corpo doíam-lhe terrivelmente. Sentou-se no chão. Manoel Soares se aproximou da fogueira, pegou o ferro incandescente, ordenou que segurassem Baltazar e, sem qualquer piedade, vazou-lhe os olhos com o ferro que havia retirado da fogueira ardente. O escravo soltou um grito de dor tão aterrador que os animais selvagens da redondeza desembestaram em uma carreira louca, fugindo daquele grito alucinante. Baltazar, não suportou tanto sofrimento, e logo desmaiou. O grupo fez o caminho de volta à casa de engenho, em silêncio, sem Baltazar, que ficara jogado no chão, sozinho e desprotegido dentro do mato para que morresse e fosse devorado pelos animais selvagens. Por ordem do fazendeiro, nunca mais se falou em Maria das Dores e Baltazar naquela casa, ou melhor, naquele engenho. *** Em frente ao que restou da bonita casa-grande do engenho, próxima às barrancas do rio, formou-se o pequeno povoado que vemos agora quando passamos de lancha pelo rio. Vivem ali apenas descendentes de antigos trabalhadores do engenho de Manoel Soares, vítima que foi de terrível assombração que começou a aterrorizá-lo desde alguns dias após ter abandonando Baltazar nas matas perigosas, para que este, desprotegido, cego e amarrado com as mãos para trás, morresse devorado pelos animais da região. (ARIMATEA COELHO)

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